Há coisas que somente caixas
velhas podem fazer por nós e contra nós. Foi revirando algumas dessas que
encontrei, entre boletins de escola e recortes indesejados, a foto de um menino
sentado atrás de uma mesa, com um lápis na mão, farda do colégio. Atrás, uma
bandeira.
Ele sorria. Leve e livremente,
como se aquele fosse um sorriso definitivo, sem um “senão”, um “apesar”, um
“mas”. Como ele conseguia sorrir daquela forma, impunemente? Um sorriso
irritantemente feliz.
As curvas daquele sorriso me falam tanto. Lembro. Por elas escorriam leves as maiores certezas que alguém já pode ter, como uma correnteza que desce sem pedir licença. Ele era a mistura efusiva de destemor e idealismo, sonho e inquietação. Sabia tudo! Até o jeito desconsertado de pegar no lápis mostrava que ele iria ao seu modo escrever a História.
Ninguém jamais foi tão seguro em suas convicções. As mais grandiosas que se possa imaginar. Sob aqueles olhos sem sinais do tempo, sem olheiras de noites mal dormidas, que acumulavam lágrimas apenas de umas e outras traquinagens bem punidas, estava o mundo inteiro. Era apenas questão de tempo, pouco tempo, para que aquele menino pudesse mudar o mundo inteiro. Afinal, ele era tão pequeno. O mundo, e não o menino.
As curvas daquele sorriso me falam tanto. Lembro. Por elas escorriam leves as maiores certezas que alguém já pode ter, como uma correnteza que desce sem pedir licença. Ele era a mistura efusiva de destemor e idealismo, sonho e inquietação. Sabia tudo! Até o jeito desconsertado de pegar no lápis mostrava que ele iria ao seu modo escrever a História.
Ninguém jamais foi tão seguro em suas convicções. As mais grandiosas que se possa imaginar. Sob aqueles olhos sem sinais do tempo, sem olheiras de noites mal dormidas, que acumulavam lágrimas apenas de umas e outras traquinagens bem punidas, estava o mundo inteiro. Era apenas questão de tempo, pouco tempo, para que aquele menino pudesse mudar o mundo inteiro. Afinal, ele era tão pequeno. O mundo, e não o menino.
Princípios eternos inegociáveis,
mentira jamais, verdade a todo custo, fidelidade sem importar as consequências,
honestidade antes de qualquer conversa, ser um bastião da justiça, mesmo que as
mãos calejem e os pés sangrem, porque há causas pelas quais vale a pena viver e
um Deus que preenche de significado e prazer todo o ser, intelecto e coração, e
por quem é capaz de até morrer. E assim a Bíblia inteira foi mastigada em
poucos meses. Lida, amassada, comentada, sublinhada. A Bíblia eu também encontrei
na caixa. Em pouco tempo aquele menino chegaria a todo o mundo e ninguém
resistiria ao Amor, afinal não é difícil mudar as pessoas! Basta querer. Aquele
sorriso me lembra o quanto ele queria.
Quando esse menino cresceu? Quando o medo do fracasso tirou-lhe a primeira hora de sono e a morte e a doença sussurraram-lhe pela primeira vez dizendo "nós existimos"? Quando
o franzir da testa tornou-se ruga? Quando as curvas livres daqueles risos puros
se tornaram as retas previsíveis destes sorrisos tensos?
Reviro caixas e mais caixas em
busca de outros registros que contem essa história, mas não acho. Como se algo
quisesse me dizer que não se marca no calendário a data em que se deixa de ser
menino para se tornar homem.
Quem disse àquele menino que
alguns princípios podem ser discutidos? Que a mentira pode também pode
arrancar-lhe uma risada? Que a verdade pode ser uma navalha? Que ser fiel e
honesto pode parecer chato? Que ser injusto calha bem em tantos ambientes? Que
a causa mais importante da vida é sentir-se bem, comer e dormir bem e, quanto
ao mundo, paciência... Quem disse a ele que “as pessoas são e sempre serão
mesmo assim”? Quem lhe disse que era apenas uma andorinha e que o tal verão era
uma utopia?
“Quem não for como criança não
entrará no reino dos céus”, leio preocupado. É que aquela criança eu já não sou
mais. Foi o drama em calafrios do vestibular? A angústia febril do primeiro emprego?
A morte crua de um próximo? O prenúncio da maioridade e o indelével
“sustente-se”? As tentativas frustradas de tentar mudar os outros? As
punhaladas letais dos escombros empoeirados do “poder eclesiástico” que feriram de quase
morte o fim da adolescência, pondo em cheque a fé em Deus, nas pessoas e nas
instituições, golpeando sonhos cultivados em comum e levando em comboio
queridos tão próximos?
Não. Talvez tenha sido a
capacidade adquirida que nenhum menino tem, nem mesmo aquele herói mirim da fotografia:
a de olhar para dentro de si e ver realmente quem se é.
A maturidade chegou? Que
pretensão! Só é maduro quem sofre ao ponto de se aperfeiçoar. Como ser maduro e
ser menino? Ser menino de verdade é ser dependente ao ponto de precisar ser conduzido,
inclusive ao reino dos céus. Ser maduro de verdade é saber ser menino de
verdade.
O menino da foto não sabia disso.
Mas o melhor dele em mim ainda borbulha em algum canto preservado e em
intensidade suficiente para que eu não esqueça do menino que fui, do homem que
sou e do menino de verdade que quero ser: maduro de verdade, com o melhor da
imaturidade que já tive. De menino-herói a menino-gente.
Se um dia disse “quero ser
grande”, hoje sonho: “quero ser pequeno”.
Pra não morrer de saudades de
mim.