sexta-feira, 27 de setembro de 2013

O CAFUNÉ E O REINO DE DEUS

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Eu não a via há anos. Minha lembrança era de seu sorriso agradável, dos cabelos grisalhos sempre bem cuidados e de sua cadeira de balanço, como toda velhinha gosta. Ah, e do carinho que sempre me demonstrou. Hoje, sem causa aparente, fui visitá-la. Sentei no sofá e enquanto apreciava um café ela adentrou a sala.

Ou melhor, adentraram a sala por ela. Numa cadeira de rodas, a conduziam. A presença daquele corpo, confesso, me incomodou. Afinal, quem sabe lidar soberanamente com o tempo que passa, inexorável? Que não se abate, por pouco que seja, com a presença da morte quando ela se aproxima, inexorável? Ou com as marcas implacáveis e inflexíveis do correr dos anos em nós?

Daquele corpo forte de outrora, restou um serzinho frágil que precisa, tal um bebê, ser carregado para sobre uma poltrona. Daqueles braços lépidos em me abraçar em minha chegada, sobraram fracos ossos cobertos por pouca carne e uma fina pele, sensível ao mínimo toque mais descuidado. E quase incapaz de levantarem para um simples aceno. Daqueles olhos que pareciam sorrir ao receber uma visita, ficou um olhar perdido, para o teto, para o nada ou para o tudo, para onde posicionassem sua cadeira. Da memória sempre viva a perguntar como estavam eu, meus estudos, meus pais... restou o Alzheimer.

Atônito e vítima desta minha imaturidade - afinal, ali não havia nada demais ou de menos do que o cumprimento do ciclo da vida - me aproximei sem esperança. Sem esperança de que ela me reconhecesse.

Coloquei-me bem diante dela, meio que roubando seu campo de visão. Ao pé de seu ouvido, falaram alto o meu nome. Segundos de silêncio. E ela finalmente me mirou. E sorriu. Disseram todos alegres na sala: “Ela reconheceu você. Ela ri quando reconhece alguém”. Tentou balbuciar alguma sílaba. 

Me senti agraciado. Sorri por dentro, comovido, sem imaginar que logo em seguida ela levantaria sua mão trêmula e tentaria acariciar meu rosto, sem sucesso. A pouca força e coordenação não permitiam. Tentei ajudar, até que a palma de sua mão estivesse toda em minha face.

Puxei um assento para perto e me demorei por longos dez minutos a acariciar seus cabelos. Para lá e para cá. Eles não tinham o brilho e o volume da senhora vaidosa de anos atrás. Mas os fios de sua cabeça ainda serviam para receber seu carinho favorito: um ingênuo cafuné.

Enquanto a mimava, me perguntei sobre quantos momentos tão preciosos quanto um cafuné podem ser apreciados por quem já não tem mais autonomia de corpo e de mente.

É verdade. Mas havia algo dela cuja autonomia restava plenamente preservada: seu espírito. Dentro de mim, algo me inquietou: “por que não?”. O papo na sala de estar já ia longe, para os outros. Foi quando me acheguei um pouco mais e disse clara e pausadamente: “Deus ama a senhora”. Esperei um pouco mais tentando calcular o tempo de a informação ser interpretada pelo cérebro fatigado. 

Repeti ainda mais calmamente: “Deus ama a senhora”. Embora sua feição me dera a certeza de que ela havia entendido, perguntei: “A senhora entendeu?” Sua boca mexeu e compreendi que aquilo era um milagre e que eu deveria prosseguir. “Deus está com a senhora. Aqui. Jesus ama a senhora. Ele está aqui. É ele quem preserva a sua vida”. Meu coração ardia por falar que Cristo a amava muito. Foi isso o que mais disse. 

Articulei brevemente sobre Jesus, confiando no muito que ela certamente já ouvira sobre a Paixão e Obra do Senhor em quase cem anos de vida e ainda temendo que ela se cansasse com tantas palavras.

Sim, ela certamente já tivera ouvido muito, mas talvez ainda não a pergunta que se seguiria em meu sermão íntimo: “Jesus quer morar em seu coração. Quer ser seu Senhor e Salvador. A senhora quer?”. Eu a ouvi dizer: “quero”. Repeti tudo de novo, enquanto seu rosto franzia, seus olhos fechavam de vez em quando e abriam, emocionados. 

Sua respiração acelerou ao ponto de me fazer medo. Fui em frente a aproveitei para deitar a mão em seu peito e acalmá-la dizendo que Jesus já estava morando ali. Orei para que ela escutasse, entregando a vida daquela mulher quase centenária Àquele que é eterno. 

Seguidor de Jesus ainda preso a tantas amarras invisíveis da religião, pedi que ela repetisse algumas palavras, e, este Cristo, que não tem amarras e é tão misericordioso, me fez ouvi-la novamente balbuciar: “Senhor Jesus, eu te recebo como Senhor e Salvador da minha vida. Vem morar em meu coração. Amém“.

Não sei explicar como me sinto agora. Mas sei que o Reino de Deus chegou àquele coração. 

No cafuné despretensioso e na boa-nova de que Jesus de verdade ama. Não porque foi minha a mão estendida (eu pecador a necessitar de misericórdia que sou) ou porque palavras minhas encontraram aquela mulher. Mas porque havia uma mão qualquer de alguém qualquer em inteireza de ser fazendo cafuné em alguém doente e cansado e porque palavras de vida eterna retiniram, num eco que ressoou desde a cruz do calvário até encontrar os ouvidos quase moucos daquela mulher. 

Jesus quis dizer o tempo todo, basta vê-lo, ouvi-lo e segui-lo, que o seu Reino era o reino dos fracos. Dos cansados, doentes, crianças, pobres, viúvas e desesperados. Por isso, tenho certeza de que Deus não demorou estender sua morada àquele coraçãozinho senil, depois daquele “quero”. Deus e seu Reino não foram vistos, mas estavam ali. É que o Reino de Deus não está na classe dos palcos, números e estardalhaços, mas estava na fraqueza daquela mulher. 

Foi uma das tardes mais singulares de minha vida. E já está decidido: voltarei àquela casa mais algumas vezes para novos momentos de cafuné e oração. 

Meu Deus, que privilégio!

"... Senhor, quando te vimos com fome ou com sede ou estrangeiro ou necessitado de roupas ou enfermo ou preso, e não te ajudamos? "Ele responderá: ‘Digo-lhes a verdade: o que vocês deixaram de fazer a alguns destes mais pequeninos, também a mim deixaram de fazê-lo”. Mateus 25:44-45

2 comentários:

Laryssa disse...

Texto muito bonito, parabéns! Para ficar registrado por escrito!hehehhe

Tatiana Nunes disse...

Meu amor, que experiência linda! É tão bom ver esse amor em você, suas atitudes nos impulsionam a fazer o mesmo... Te amo!

Por Edilson de Holanda